A alimentação no UTMB

O que comer numa corrida de 170 Km montanha acima e montanha abaixo, é uma pergunta que muitos fazem e para a qual não há uma resposta única, é aquele tipo de pergunta que podemos dizer que é para 1.000.000,00 €.

Também não tenho a resposta correcta para esta pertinente questão, penso que é uma questão de testar diferentes soluções até se encontrar aquela que menos irá perturbar a nossa actividade, e irei partilhar aqui qual vai ser a minha estratégia para os 170Km do UTMB.

Um facto que quase todos conhecemos é o de que é difícil comer quando se está a realizar um esforço físico, neste caso particular correr. O porquê disso acontecer é de simples resposta, temos uma quantidade limitada de sangue no corpo e esta não consegue alimentar os músculos e a digestão em simultâneo quando ambos os processos estão a ser fortemente requisitados, por isso os atletas mais rápidos e de elite sofrem bastante mais deste problema do que eu e demais atletas mais lentos.

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Outro facto conhecido é o da importância de nos alimentarmos bem durante este tipo de provas. A justificação também é simples, um atleta de elite demora mais de 24 horas para concluir o UTMB, realisticamente irei demorar mais de 40 horas para concluir os mesmos 170Km, pelo que experimentem estar 2 dias sem comer e verão se não vão ter fome. Agora imaginem 2 dias sem comer enquanto fazem exercício físico intenso, e vão perceber como é importante uma boa alimentação.

O importante agora é conseguir a união dos dois factos em cima, tentando antecipar o melhor possível estas variáveis da necessidade de comer com a dificuldade em comer, obtendo a melhor receita possível.

Vamos então à minha receita alimentar para o UTMB, que claro já está treinada e assim espero que possa funcionar tranquilamente como em todos os treinos que fiz. Sendo uma “receita” feita por mim e para mim, poderá não funcionar bem com qualquer outro de vocês, mas pelo menos podem ficar com uma ideia para fazer os vossos próprios planos.

Há 4 vectores que temos de considerar para alimentar numa prova:

  • Carboidratos para o cérebro. Com quantidades de açúcar insuficientes no sangue, as funções mentais podem degradar-se e causar impactos na disposição, criar depressão, ou diminuir as capacidades cognitivas que podem levar a muitas decisões erradas durante a prova. Em alguns casos poderá reduzir as capacidades motoras tornando a corrida ainda mais difícil.
  • Carboidratos para as funções musculares. Os músculos requerem carboidratos e gordura para funcionarem, sendo que os carboidratos estão limitados no nosso corpo (em média cada pessoa tem cerca de 2000 calorias de reservas de hidratos de carbono).
  • Proteína para proteger os músculos. Está demonstrado que o consumo de proteína protege os músculos e melhora a recuperação durante o exercício. Proteína e hidratos de carbono em conjunto melhoram a resistência em prova, do que apenas os carboidratos isolados.
  • Gordura para as funções musculares. O corpo humano tem mais reservas de gordura do que a necessária para uma corrida como o UTMB (e no meu caso bastante mais do que a necessária). No entanto é benéfico continuar a ingerir alguma gordura.

Para um atleta de elite a referência é de 1g de carboidratos/kg/hora de esforço. Para um atleta do fundo do pelotão como eu, a referência é uma dose de cerca 40g de carboidratos a cada 45-60 minutos de esforço.

Isto coincide mais ou menos o mito de “comer de hora a hora” de que tanto se fala no meio do pelotão.

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Por opção não tomo géis. Reconheço a facilidade de utilização e a rapidez com que os nutrientes são absorvidos, mas por outro lado são viscosos demais para o meu gosto, o sabor é muito enjoativo, e ao fim de tomar 2 ou 3 já estou enjoado e não consigo comer mais nenhum.

O ano passado, no Ultra Trail Cotê d’Azur Mercantour, de características muito semelhantes ao UTMB, a minha alimentação foi sobretudo barras energéticas e sandes mistas de presunto e queijo. As barras energéticas eram da Gold Nutrition mas, apesar de reconhecer mais uma vez a facilidade de utilização, sofrem quase do mesmo mal que os géis, ao fim de comer 3 ou 4, já me é muito difícil comer mais alguma. São enjoativas, a massa que se cria na boca ao mastigar tem uma consistência que não me agrada, tornando-se um sacrifício muito grande dentro da dificuldade que já é correr uma prova destas.

Procurei assim outras alternativas no mercado, mais naturais, e que pudessem corresponder às necessidades energéticas que preciso para o UTMB. Apostei no mercado nacional e tenho experimentado, com sucesso, as barras energéticas BEQ e as barras energéticas Olimpo.

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Barra Energética de Querença

As barras energéticas BEQ ou Barra Energética de Querença, descobri no ano passado quando participei na I Corrida Vertical Aquashow, e soube-me muito bem quando experimentei pela primeira vez. Esta é uma barra energética 100% natural, feita à base de frutos secos e mel do barrocal algarvio. A textura agrada-me, o sabor agrada-me, não sendo doce nem amarga, e ao contrário das barras energéticas processadas que se tornam intragáveis para mim ao fim de comer 2 ou 3, esta é a barra que me faz apetecer ir correr só para ter um pretexto para comer mais uma.

As barras energéticas Olimpo descobri mais tarde. Na prática tenho o conhecimento da sua existência há bastante tempo, mas apenas este ano experimentei estas barras. As Olimpo têm diversas variantes, recaindo a minha preferência pelas barras Origem, Tour, Red e Noz. As Barras Olimpo são barras energéticas de produção artesanal, de fabrico caseiro, sem corantes nem conservantes, com um sabor natural e delicioso. Não querendo ser redutor estas barras são uma espécie de nougat mais refinado e vocacionado para a actividade desportiva.

As barras Origem são barras de cereais, energéticas e naturais que contêm: aveia, nozes, manga, tâmaras, mel, sementes de abóbora e girassol, pólen de mel e sementes de chia e sal. A distribuição do sal nem sempre é uniforme, já tendo comido barras mais doces numa extremidade e salgadas na outra, mas esse é um mal menor. Gosto do travo doce do mel e comem-se bastante bem.

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As barras Tour são em tudo idênticas às barras Origem mas com mais açúcar. O sabor é agradável, come-se igualmente bem, mas a dose extra de açúcar faz com que algumas vezes não consiga comer uma barra toda de uma vez. Como metade, guardo metade, e termino a degustação 15/20 minutos depois.

As barras RED são talvez as minhas preferidas dentro das barras Olimpo. Contêm: aveia, avelãs, arandos, mirtilos e morangos desidratados, mel, sementes de abóbora e girassol, e a juntar ao sabor muito agradável, são mais moles que as Origem e Tour, tornando muito fácil a mastigação desta barra.

Por fim as barras de Noz. São barras de noz muito estaladiças, as mais duras das quatro que aqui comparo, e contêm: aveia, nozes, mel, sementes de abóbora e girassol. São boas para alimentar e desenjoar.

A estas cinco barras energéticas, tenho de juntar as insubstituíveis sandes de presunto e queijo. Duas fatias de pão de forma integral com uma fatia de queijo flamengo light e uma fatia de presunto. No Ultra Trail Cotê d’Azur Mercantour do ano passado, sentei-me refastelado numa pedra a quase 2500 metros de altitude enquanto via o sol-pôr atrás dos Alpes Marítimos, sem mais ninguém à minha volta, só eu e a minha sandes de que queijo e presunto. Só faltou mesmo um copo de tinto para a sublimação do estado de espírito ser completa.

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A isto há ainda que juntar um chocolate preto com 72% ou mais de cacau, e o Fast Recovery que irei beber mais ou menos de 30 em 30 quilómetros.

Feitas as contas são cerca de 2,2Kg de comida para transportar, que correspondem a 1092g de carboidratos, 259g de proteína, e 9075Kcal. A título de curiosidade, numa corrida deste género costumo perder cerca de 25000 a 30000 calorias.

Em resumo será algo muito semelhante à tabela em baixo:

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Em termos teóricos necessitarei de 1840g de hidratos de carbono e só transporto 1092g. As restantes 750g espero obtê-las nos três abastecimentos com refeição quente, onde geralmente há massa e sopa para comer. Nos restantes abastecimentos também picarei o que lá houver e que me esteja a apetecer no momento, tipo fruta ou outros salgados diferentes dos que transporto comigo.

Por fim mas não menos importante, refiro a necessidade de consumir electrólitos com muita frequência. Sódio, magnésio, potássio e bicarbonato de sódio, são sais que se perdem em quantidades elevadas numa prova tão dura, e que não se pode falhar na reposição. Há comprimidos para este fim mas eu prefiro misturar uma saqueta de Gold Nutrition 4 Active Electrolytes num dos meus bidons de água. Têm um sabor ligeiro a lima limão, são fáceis de misturar e diluir e são os meus preferidos desde há muito tempo a esta parte. Cada saqueta tem 3 gramas, pelo que são fáceis de transportar.

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Uma nota final sobre a cafeína, pois também a irei tomar algures durante a prova. Cada pessoa responde de forma diferente à cafeína, pelo que o limite de dose recomendada varia de atleta para atleta. Em geral é recomendado não ultrapassar as 200 a 300 miligramas por dia, de forma a evitar efeitos colaterais negativos, como a privação do sono, náuseas, cólicas, ansiedade, fadiga, dores de cabeça e problemas gastrointestinais. Os corredores que competem com cafeína em excesso no seu corpo podem experimentar efeitos secundários adicionais, tais como rigidez muscular, cólicas e desidratação. Ultrapassando uma dose de 500 miligramas, corre-se o risco de efeitos secundários mais graves, que podem incluir náuseas, palpitações cardíacas, diarreia e tremores. Dito isto, levo comigo um comprimido de 200mg, partido em 4 partes iguais, para dar uma energia extra sempre que for necessário mas sem excessos por demais.

Uma nota muito importante e que nunca se deve esquecer: Os electrólitos desempenham um papel importante na regulação do ritmo cardíaco. Combinar a cafeína com um distúrbio grande nos electrólitos, situação muito comuns na fase final de uma ultramaratona, pode ser um factor de risco e que poderá causar problemas no coração de atletas menos rigorosos com a preparação da sua alimentação.

Continuação de bons treinos e de boas aventuras!!!

 

Sobre mim…

Chamo-me Nuno Gião e sou um atleta de pelotão que gosta de correr longas distâncias. Se há uns anos atrás me tivessem dito que ia correr uma meia maratona eu chamaria louca a essa pessoa. Imaginem se me dissessem que em 2014 iria correr uma prova 100 Km... Actualmente corro Ultra Trails, participo em desafios de endurance na natureza e é sempre uma enorme satisfação que cruzo as mais fantásticas paisagens. Tento superar os diversos desafios a que me proponho. A vida é demasiado curta e bonita para ser desperdiçada sentado num sofá.

5 Comments

  1. 20/07/2016
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    Está aí uma lição bem estudada Nuno, sem dúvida que a repetição e testes em treinos longos e certas provas ajudam a conhecer melhor o nosso organismo e as nossas reacções.

    Não estando obviamente nesse patamar, para já só maratonas e trails sub-ultra (lá chegaremos), um dos meus maiores adversários tem sido o meu estômago e a sua sensibilidade. Sabendo que cada organismo tem as suas reacções, tenho tirado ideias e sugestões para testar de várias fontes e o teu post também vem ajudar à festa.

    Só uma questão, que tem que ver com cafeína e não só – ao nível de gomas, tens alguma referência/experiência. Conto testar também essa vertente em breve, mas todas os inputs ajudam.
    A versão electrólitos solúveis vs cápsula é que me deixa na dúvida, pois o meu estômago tende a rejeitar líquidos com sabores ao fim de umas quantas horas.

    Abraço e continuação de boa preparação para o UTMB 🙂

    • 20/07/2016
      Reply

      Obrigado 🙂 Relativamente aos electrólitos tens para misturar na água ou outra bebida os da isostar de sabor neutro 😉

  2. 21/07/2016
    Reply

    Excelente texto, obrigado pela partilha. Muito informativo. Vou investigar essas barras e dar mais atenção à proteína. Eu mudei do Perpetuem para a geis e gomas, não me dei muito mal na Ehunmilak, já foi um avanço, mas não foi perfeito, especialmente no período muito quente, e senti que podia ter tido mais alimentação a sério como as que sugeres, uma vez que o ritmo é suficientemente lento para a comer e digerir. Levei muita coisa diferente para experimentar. Tudo o que era doce acabou por enjoar com o calor. Dei-me muito bem com tudo o que era chocolate com muito cacau (como sugeres) e com gomas mais ácidas. Infelizmente é difícil testar em treinos o que é estar mais de 40 horas em movimento!

    • 21/07/2016
      Reply

      Concordo que não é fácil testar 40 horas em apenas 8 ou 9 de um treino mais longo, mas já dá para termos uma ideia do que +ou- conseguimos comer ou não. Por exemplo as barras processadas eu consigo come-las mas nunca uma por inteiro, apenas metade de hora a hora, além de que destes to aquele bolo de comida “falsa” que se cria na boca. Como tu também começo a enjoar as coisas muito doces com o passar das horas 🙂 Preciso de algo que alimente mas também que sacie o estômago e com géis isso não acontece 🙂

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